Sumiço de quase meio bilhão de reais de 2697 empresas coloca em risco sistema de pagamentos com cartão de crédito no Brasil
Duas mil e seiscentas e noventa e
sete empresas de diversos segmentos comerciais de todo o país tiveram R$ 450
milhões apropriados indevidamente por uma credenciadora de cartões de débito e
crédito, a ADIQ Instituição de Pagamento SA. Pertencente ao mesmo grupo do
banco digital BS2, a ADIQ tem utilizado manobras legais e desinformação para se
negar a repassar às empresas valores que foram bloqueados equivocadamente pela
Justiça Federal, numa investigação sobre lavagem de dinheiro, e posteriormente
desbloqueados.
O quase meio bilhão de reais que
deveria chegar às contas das 2697 empresas e desapareceram pelo caminho são
referentes a 30 dias de vendas com cartões de crédito em máquinas de pagamento
da I9Pay, parceira da ADIQ nestas transações financeiras. Entre os pontos
comerciais prejudicados, estão 336 postos de combustíveis e lojas de
conveniências do Paraná, com prejuízo de R$ 80,5 milhões, segundo informações
do Paranapetro, sindicato que representa o setor no estado e tomou a iniciativa
de tornar público o ocorrido.
“Estamos diante de um dos maiores
casos de quebra de confiança no sistema financeiro do país, que, além de
ameaçar gravemente empresas idôneas, coloca em risco todo o sistema de arranjo
de pagamentos utilizado no Brasil, com graves consequências para a operação de
cartões de débito, crédito e pix”, denuncia o presidente do Paranapetro, Paulo
Fernando da Silva. “Atualmente a maior parte das vendas no varejo se dá por
meio das máquinas de cartões. Diante disso, estas milhares de empresas
prejudicadas estão passando por momentos críticos para se manterem vivas sem os
recebíveis de praticamente um mês inteiro de vendas. Muitas tiveram que
recorrer a empréstimos bancários, com juros elevados, e há risco de quebra e
demissões”.
Operação Concierge efetuou bloqueios equivocados
Todo o caso começou com uma
medida equivocada da Justiça Federal, como demonstra o Paranapetro. No dia 29
de agosto, a Polícia Federal deflagrou a Operação Concierge, criada para investigar um suposto esquema de lavagem
de dinheiro. A ação resultou em 17 prisões e bloqueios de contas de 200 pessoas
físicas e jurídicas. Uma das empresas atingidas pelos bloqueios foi o
InoveBanco e sua subsidiária, I9Pay, que exercia a função de subcredenciadora, também chamada de subadquirente – processo
no qual atuava conjuntamente com a adquirente ADIQ. A medida judicial foi
expedida pela 9ª Vara Federal de Campinas
(vide processo: 50057635020244036105).
A razão social
completa desta empresa é I9PAY Soluções em
Pagamentos e Serviços LTDA, mas nas maquininhas de cartão a marca fantasia
ostentada é InovePay. Está registrada pelo CNPJ 34.355.611/0001-74.
“Ocorre que, junto com outros
recursos da I9Pay, foram bloqueados todos os valores obtidos de forma legítima,
com vendas, por estas 2697 empresas idôneas que eram clientes dela”, explica
Paulo Fernando da Silva. “Estes recursos eram o resultado de um mês
praticamente inteiro de vendas com cartões de crédito nas maquininhas. Somente
dos 336 postos filiados ao Paranapetro que eram parceiros da I9Pay, foram R$
80,5 milhões. Pelos dados que verificamos no processo judicial, calculamos que
um total de R$ 450 milhões de 2697 empresas foram bloqueados”.
Justiça corrigiu erro e ordenou pagamentos
Alarmados pela situação que
comprometeu gravemente seu caixa, os comerciantes afetados começaram a procurar
a Justiça. “O Paranapetro foi a primeira parte interessada a se habilitar no
processo e conseguiu demonstrar à Justiça Federal que, em meio aos bloqueios
nas contas da I9Pay, havia dinheiro de terceiros idôneos, os comerciantes que
não tinham nada a ver com a questão investigada pela operação”, relembra
presidente da entidade. “A Justiça entendeu o erro e determinou a liberação dos
valores correspondentes às vendas daqueles comerciantes feitas pelas
maquininhas da I9Pay, ordenando o repasse aos seus devidos donos. Começou aí um
jogo de empurra entre a I9Pay e a ADIQ que resultou no sumiço do dinheiro dos
milhares de comerciantes afetados”.
Como funciona o Arranjo de Pagamento
Para entender melhor a situação, é
preciso analisar o complicado sistema de funcionamento do chamado Arranjo de
Pagamento. Segundo o Banco Central, trata-se do conjunto de regras e
procedimentos que facilitam as transações financeiras que usam dinheiro
eletrônico. Diferentemente da compra com dinheiro vivo entre duas pessoas que
se conhecem, o arranjo conecta todas as pessoas que a ele aderem. É o que
acontece quando o cliente usa uma bandeira de cartão de crédito numa compra que
só é possível porque o vendedor aceita receber daquela bandeira.
Entre os agentes previstos pelo
Arranjo de Pagamento (veja descrição mais detalhada na petição em anexo), estão
as credenciadoras/adquirentes e as subcredenciadoras/subadquirentes. No caso do
sumiço do quase meio bilhão dos comerciantes, é na relação entre estas duas
partes que surgiu o problema.
A ADIQ atua como credenciadora ou
adquirente: é uma instituição de pagamento que permite que estabelecimentos
comerciais aceitem pagamentos com cartão. Pode conectar o comerciante às
bandeiras de cartão e, também, se conectar a uma subcredenciadora (subadquirente),
responsável por fazer a ponte entre o estabelecimento comercial e a
credenciadora. Além disso, deve garantir que o comerciante receba o valor das
transações realizadas. Desse modo o credenciador atua como intermediário entre
comerciantes e bandeiras de cartão, oferecendo soluções para aceitar pagamentos
eletrônicos.
Já a I9Pay tinha o papel de
subcredenciadora ou subadquirente. Neste caso, realiza a intermediação entre
credenciadora/adquirente e lojistas. Ao invés do estabelecimento comercial se
conectar direto com a credenciadora, utiliza os serviços desta forma de
intermediação.
Manobras jurídicas e desinformação
“Quando a Justiça Federal ordenou
a liberação dos valores dos comerciantes, sentimos um alívio, mas foi a partir
daí que a situação se complicou. A ADIQ primeiramente informou que não sabia
quais valores cada uma das 2697 empresas deveriam receber, pois não teria este
registro, o que não está de acordo com as regras do Arranjo de Pagamento e é
uma obrigação legal. A Polícia Federal também se manifestou informando que a
ADIQ tinha todos os dados. Ficou evidente que a empresa estava ganhando tempo”,
explica Paulo Fernando da Silva.
Em seguida, segundo o presidente
do Paranapetro, a ADIQ começou a solicitar dos estabelecimentos comerciais
diversos documentos, postergando ao máximo o pagamento determinado pela
Justiça. No dia 10 de outubro, a Justiça Federal deu um prazo de cinco dias
para que a credenciadora finalizasse os pagamentos. “Entretanto, no dia 17 de
outubro a empresa pagou somente uma pequena parcela, referente às compras com
débito e crédito de um dia, a data de 29 de agosto. Deixou de pagar todo o
restante: compras no crédito entre 31 de julho e 28 de agosto deste ano, além
de todas as demais compras parceladas que ainda serão recebidas pela ADIQ”.
“Em petição no processo, a ADIQ
tentou induzir a Justiça ao erro, afirmando que liquidava todas as operações em
favor da I9Pay de forma imediata, incluindo cartões de crédito, a título de
adiantamento de crédito. Tentou assim afirmar que o dinheiro estava com a
I9Pay, quando, na verdade, está com a própria ADIQ”, relata Silva. “Anexamos ao
processo documentos que mostram que os pagamentos de cartões de crédito para os
estabelecimentos eram feitos sempre em 30 dias. Além disso, conforme Circular
do Bacen (3.978/2020), a ADIQ, como credenciadora, é legalmente responsável
pelas operações realizadas por meio da I9Pay (subcredenciadora)”.
Responsabilidade dos fiéis depositários
“Se de fato a ADIQ fazia
adiantamentos para a I9Pay nestes valores de cartão de crédito, o fez de forma
açodada, negligente e sob sua conta, risco e responsabilidade, não podendo
tentar fugir de sua responsabilidade junto aos comerciantes”, prossegue Silva.
Como agravante, o presidente relembra que a ADIQ e o Banco BS2 foram nomeados –
a pedido da Justiça – como fiéis depositárias dos valores transferidos pelos
bancos emissores dos cartões de propriedade dos estabelecimentos comerciais.
A partir das novas alegações da
ADIQ, o Paranapetro pediu a Justiça Federal que bloqueasse os valores
correspondentes aos seus associados nas contas desta empresa e que o Banco
Central fosse informado das irregularidades, além de prestar conta, de forma de
transparente, dos valores recebidos dos bancos emissores referentes às
transações efetuadas nas máquinas da I9Pay. “Esperamos que a Justiça seja ágil,
pois a cada dia que passa o prejuízo dos comerciantes é maior. Estes valores
estão fazendo muita falta como capital de giro das empresas. Em tempos de juros
elevados, o risco de endividamento muito alto nos bancos pode resultar na
quebra de muitas delas”.
Sistema de pagamento com cartão de crédito em risco no Brasil
Diante deste quadro relatado, o
sistema de pagamentos de cartões de crédito no Brasil fica numa situação de
risco, completa o presidente do Paranapetro. “Se o caso não for resolvido com a
devolução dos valores aos devidos donos, abre-se um precedente gravíssimo, no
qual uma adquirente simplesmente recebe, não paga os comerciantes, e estes
ficam sem qualquer garantida de recebimento por suas vendas”, conclui.